Dois anos de recessão?
Executivo do Bradesco em Nova York analisa como Wall Street – e a economia real – emergirá da tempestade
Há 19 anos em Wall Street, com passagens por catedrais financeiras como Morgan Stanley e JP Morgan, Marcelo Cabral sentiu de perto, esta semana, o bafo da crise que deve redesenhar o sistema financeiro mundial, se suas expectativas se confirmarem. Embora a quinta e a sexta-feiras tenham sido de bolsas em alta, o máximo de otimismo que ele se permite é um escaldado "O pior já passou". Marcelo responde pela distribuição internacional de títulos de renda variável do Banco Bradesco de Investimentos, em Nova York, e não se lembra de algo próximo ao pânico que tomou conta dos mercados nos últimos dias. Precedente? Só na literatura relativa à crise de confiança que levou ao crash de 1929. Mas ele não acredita em uma quebra como aquela por ver nos bancos centrais da atualidade um arsenal com que não contavam no início do século passado. De todo modo, adverte, vem aí uma retração no crédito global e, com ela, um cenário de dois a três anos sem crescimento na economia mundial. Confira, a seguir, a entrevista que Marcelo concedeu a AMANHÃ nesta sexta-feira, por telefone.
O otimismo nestes dois últimos dias da semana tem bases sólidas, na sua opinião?
Não sei se há otimismo. Houve, sim, um aumento do preço das ações, e isso em parte pode ser explicado por mudanças nas regras específicas de negociação dos papéis - mas o mercado de renda fixa não demonstrou uma melhora tão evidente quanto o mercado de ações.
Qual a mudança mais significativa nestas regras?
A mudança mais importante foi a de dificultar a venda de ações quando não se tinha as ações... O governo dificultou muito este mecanismo que permite a alguém vender sem ter a ação. Isso não é permitido mais. E, com isso, houve o fechamento de posições, isto é, investidores foram obrigados a fechar posições. Eles tiveram de comprar para fechar suas posições e não porque as ações estivessem baratas. Estas medidas criaram esta obrigação de compra, de ajuste de posições, algo que tranqüiliza o mercado.
Mas não chegam a trazer otimismo...
Estas medidas, embora criem um importante ajuste de posições, não refletem, necessariamente, um otimismo... Agora, inevitavelmente estas ações do governo norte-americano deram um alívio ao mercado, na medida em que todos perceberam que as autoridades tomaram medidas muito fortes com o objetivo de manter a estabilidade global do sistema financeiro. O mercado começou a virar, favoravelmente, ontem (quinta-feira), na hora do almoço, quando ficou claro que o governo iria bancar uma nacionalização dos títulos que estão gerando estas perdas e que levaram à derrocada de três grandes bancos de investimento (Bearn Stearns, Lehman Brothers e Merryl Linch). E é isso o que vai acontecer. O governo vai comprar estes títulos podres, vai tirar estes ativos tóxicos dos balanços de bancos de investimento e corretores.
E como está o debate público sobre a postura do governo de assumir, em nome dos contribuintes, esta conta bilionária?
O debate aqui está bastante acalorado. Afinal, trata-se de bancos de investimento e corretores que tomaram posições extremamente agressivas em papéis de alto risco - títulos de renda fixa ligados ao setor imobiliário. Esses títulos eram extremamente voláteis. Operações altamente alavancadas. Houve uma especulação imobiliária muito grande aqui nos EUA: por dez anos se registrou um forte aumento dos preços dos imóveis... Em 2006, estes preços começaram a cair e desde então seguem caindo... E não se tem clareza sobre onde é que está o fundo do poço, qual o momento em que os preços dos imóveis começarão a reagir. Com a onda de inadimplência, as perdas dos bancos de investimento e corretores que apostaram com muita força nesse mercado já chegaram, reconhecidamente, a 400 bilhões de dólares. E alguns analistas projetam que estas perdas poderão atingir 1,3 trilhão de dólares. Ou seja, os prejuízos desses bancos de investimento e corretores ainda não estão totalmente dimensionados. Além disso, há o fato de que estes títulos associados a hipotecas perderam a liquidez. Ninguém compra mais.
De onde vai sair todo este dinheiro, caso as perdas se elevem à estratosfera de 1,3 trilhão de dólares?
O governo apresentou um plano para comprar estes títulos. O governo vai assumir este prejuízo, pois a conclusão foi de que se não assumir o prejuízo a confiança no sistema financeiro fica comprometida de uma forma inaceitável e ficamos ante a possibilidade de uma ruptura. Se o mercado se apercebe de que os balanços dos bancos de investimento, dos corretores e das seguradoras estão contaminados com estes ativos tóxicos, e se não há uma visão clara sobre a que magnitude podem chegar estas perdas, instaura-se uma crise de confiança no sistema financeiro que pode ser mais onerosa do que o custo de sanear os problemas. Quando os bancos não querem mais negociar um com o outro, paralisa-se a economia real.
Que paralelo você faz entre esta crise e a de 1929?
Há um paralelo com 29, sim. Naquele ano, teve corrida aos bancos. E teve quebra dos bancos comerciais (que são estes que têm muitas agências e captam depósitos do público). Hoje, a função de intermediação financeira não estão tão ligada aos bancos comerciais e sim aos bancos de investimento e às corretoras. São eles que estão desempenhando esta função. Então, a versão moderna daquela velha corrida aos bancos que houve em 1929 é, agora, é esta crise de confiança nos bancos de investimento e nas corretoras. Houve setores do mercado financeiro que ficaram praticamente paralisados. Felizmente, o governo apresentou um plano para comprar estes ativos tóxicos, que serão colocados em uma agência governamental a ser criada com o fim específico de administrar estes ativos, na expectativa de que, ao longo do tempo, os valores destes títulos se recupere. Aí, ela vende estes ativos. Mas vende de forma ordenada. Não é como agora, em que os bancos de investimento e corretoras tentam desesperadamente vender, e rápido, papéis para os quais não existe, neste momento, ninguém disposto a comprar.
Deste debate acalorado, como você definiu, que Wall Street vai emergir?
Existe aqui a convicção de que o sistema regulatório americano falhou ao não conseguir prevenir toda esta crise. É consenso de que os bancos de investimento e as corretoras não são submetidos a uma regulamentação tão rígida quanto aquela que é aplicada aos bancos comerciais. E isso deverá mudar em Wall Street. Porque com a modernização do mercado financeiro os bancos de investimento e as corretoras assumiram uma importância extremamente crítica na intermediação financeira e na administração das poupanças nacionais. E, apesar disso, eles são muito menos regulamentados que os bancos comerciais (Citibank, Bank of America, JP Morgan). Você tinha cinco grandes bancos de investimento? Bear Stearns, Merrill Lynch, Goldman Sachs, Lehman Brothers e Morgan Stanley. Destes cinco, três foram vitimados. Restaram dois, o Goldman Sachs e o Morgan Stanley, e ambos ficaram sob ataque. Há, então, esta crítica à ineficiência das várias agências regulatórias que existem por aqui e que não cumpriram seu papel, na visão de acadêmicos, analistas, políticos e da população em geral. Os bancos de investimento e as corretoras serão, agora, mais regulamentados, sem dúvida. E sua rentabilidade vai cair.
E qual a disposição dos norte-americanos para pagar essa conta?
Debate-se se há cabimento em usar dinheiro público para salvar estas instituições, como o Bear Stearns e a AIG, maior seguradora do país, que recebeu um empréstimo federal de 80 bilhões de dólares. O próprio Tesouro relutou muito em pedir autorização do congresso para fazer a compra destes ativos tóxicos. Mas essa relutância cedeu na medida em que ficou clara a magnitude da crise. Estava se delineando uma situação de colapso, simplesmente. Inclusive chegou a haver alguns primeiros indícios de
quebra de fundos de renda fixa, que são o ativo financeiro mais comum. A maior quantidade de recursos da economia está nestes fundos, cerca de 3,4 trilhões de dólares, que pertencem principalmente a investidores institucionais. Um desses fundos sofreu uma corrida de saques. Outro foi desmantelado. A crise, aí, pegou na trave. Se a crise se alastra nestes fundos, poderíamos ter conseqüências extremamente graves.
E agora, finda esta semana de baixos e altos. Há razão para otimismo ou alguma confiança?
Temos que ver. Esta crise já tem 14 meses. Desde que ela começou, o mercado já viu uma série de intervenções governamentais de diferentes graus de amplitude. E após cada uma destas intervenções o mercado respirava aliviado, reagia com otimismo e invariavelmente acabava, algum tempo depois, voltando a uma situação de nervosismo e pessimismo porque percebia que as medidas anteriores do governo não haviam resolvido a crise. A gente não sabe se esta intervenção do governo agora, que parece garantir a integridade do sistema financeiro, pois o mercado estava começando a precificar o risco de uma quebra sistêmica, é suficiente ou não para eliminar o risco. Mas há setores do mercado financeiro importantíssimos que ainda estão disfuncionais.
Por exemplo?
Um exemplo é o setor de commercial papers, pelo qual as empresas fazem financiamento de curto prazo para suas necessidades de capital de giro. E, como este, há vários outros setores vitais do mercado financeiro que não estão funcionando. A semana termina com a sensação de que o pior foi evitado. Agora, o mercado trata de avaliar quais as conseqüências de longo prazo.
Para a economia real, qual o cenário que se desenha?
Vai haver uma contração na disponibilidade de crédito para a economia no mundo todo. Alguns economistas calculam que, para o PIB mundial crescer 3% em termos reais, é preciso que haja uma expansão do crédito em 10 a 15%. É uma correlação clássica. O que acontece agora? A disponibilidade de crédito na economia mundial inevitavelmente vai diminuir. E o impacto disso é que vamos ter um comprometimento na economia mundial. O risco de recessão aumentou de forma substancial. Essa é uma das perguntas: qual é a extensão destes danos? Já vínhamos em processo de desaceleração... E o risco de recessão cresceu. A questão é quanto tempo vai levar para que a economia se recupere. Alguns economistas mais pessimistas estimam que essa recuperação pode levar de dois a três anos. Outros, ainda mais pessimistas, comparam esta crise com a crise bancária do Japão, que custou uma década inteira sem crescimento, nos anos 90. Foi a década perdida para o Japão.
Que idéias estão em alta e que idéias estão em baixa após esta tempestade?
A projeção que se faz é que a idéia segundo a qual o mercado funciona melhor quanto mais desregulamentado ele for... esta idéia está com um olho roxo. Está arranhada. A crise está dando argumento às linhas de pensamento que defendem a existência de maior regulamentação e um certo nível de intervenção do governo nos mercados. No debate ideológico, entramos num período em que a gangorra tende a virar em favor dos defensores de maior presença do Estado. E um outro ponto importante é de dúvida sobre se a posição hegemônica dos EUA como financeiro mundial sairá abalada, com a quebra de três bastiões de Wall Street (Lehman, Goldman e Merrill).
1929 pode voltar?
Ao socorrer seguradoras, bancos de investimento e corretoras, o Fed fez o que um banco central clássico jamais fez. Ele redefiniu as funções de um banco central, extrapolou suas funções clássicas, pois até então um banco central só dava liquidez para bancos comerciais, nunca para bancos de investimento, corretoras e seguradoras. Eu diria que hoje um banco central tem um poder de ação e intervenção muito maior e mais amplo do que tinha em 1929. Por isso não deveremos ter um novo 29. Há toda uma curva de aprendizado em nosso favor. O próprio Ben Bernanke (presidente do Fed), um acadêmico muito respeitado, fez sua tese de doutorado sobre a função de um banco central em um contexto de depressão...
http://www.amanha.com.br/NoticiaDetalhe.aspx?NoticiaID=31b9ef62-ed96-4752-9552-e557d9e3cec2